Entre Dívida e Dignidade: o Lar como Limite da Execução
- Equipe Consultivo Imobiliário

- 7 de out.
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A decisão da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, proferida no REsp 2.111.839 de maio de 2025, ao reafirmar a impenhorabilidade do bem de família em execução movida contra sócio retirante, transcende o debate jurídico estritamente técnico. Ela nos convida a refletir sobre o papel do Direito na preservação da vida em sociedade. O lar, quando reconhecido como imune à penhora, deixa de ser apenas patrimônio material e se converte em símbolo daquilo que sustenta a dignidade humana e garante a continuidade da coletividade.
O caso concreto envolvia a execução de valores oriundos de reclamação trabalhista contra o patrimônio de um sócio já falecido. O imóvel em discussão, ainda vinculado ao espólio, servia de moradia aos herdeiros, entre os quais havia um incapaz. Em jogo estava algo maior que a classificação de um bem: discutia-se se a lógica da cobrança poderia prevalecer sobre a necessidade elementar de habitação, sobre a segurança mínima de um núcleo familiar já fragilizado pela perda.
O ministro relator ressaltou que a impenhorabilidade não extingue a dívida, mas a redimensiona. A obrigação permanece válida e exigível, porém não pode recair sobre aquilo que constitui o espaço essencial da vida cotidiana: a moradia. Essa opção legislativa, consagrada pela Lei do Bem de Família (Lei nº 8.009/1990) e reafirmada pela jurisprudência, traduz um valor constitucional que supera o interesse imediato do credor: a preservação do núcleo familiar como fundamento da ordem social.
A decisão evidencia um embate entre duas vertentes. De um lado, a racionalidade econômica, que reduz o indivíduo à condição de devedor e mede sua existência em créditos e débitos. De outro, a racionalidade existencial, que reconhece a existência de bens cuja perda comprometeria não apenas o sujeito, mas o equilíbrio da sociedade. A casa, nesse contexto, não é simples mercadoria: é espaço de pertencimento, de memória, de proteção contra a precariedade e de transmissão de valores entre gerações.
Ao proteger o imóvel residencial da penhora, o Judiciário não nega a dívida, mas estabelece uma hierarquia de valores: a vida digna não pode ser sacrificada em nome da satisfação econômica. Essa é uma escolha ética e política, que revela a função contramajoritária da Justiça: conter a lógica financeira quando esta ameaça corroer os alicerces da convivência humana.
Não por acaso, o relator lembrou que a impenhorabilidade não elimina a responsabilidade patrimonial do espólio, mas apenas direciona a execução para outros bens. O direito do credor é preservado, mas disciplinado por limites que garantem que a dignidade permaneça como horizonte do ordenamento jurídico.
Esse equilíbrio é decisivo. Sem ele, a Justiça correria o risco de legitimar a destruição de famílias inteiras em nome da cobrança de créditos. Ao reafirmar a impenhorabilidade, o STJ traça uma fronteira clara: a que separa o necessário do supérfluo, a dívida legítima do direito essencial de viver com dignidade.
Montesquieu já advertia: “a injustiça que se faz a um é uma ameaça que se faz a todos”. Permitir que a lógica patrimonial dissolvesse o sentido humano da moradia significaria punir uma família em particular e enfraquecer o tecido social como um todo. Nesse julgamento, a Justiça cumpre sua função de guardiã dos fundamentos invisíveis que sustentam a vida coletiva.
Assim, a decisão do STJ é mais que técnica: é filosófica em sua essência. Ao resguardar o bem de família, o tribunal reafirma que o Direito não se limita ao cálculo de débitos, mas também é afirmação de valores. Mais do que proteger paredes e telhados, protege o conceito de lar como refúgio, como espaço de humanidade, como resistência à precariedade. Reafirma, em última instância, que a justiça não se mede apenas pela eficácia da execução, mas pela sua capacidade de proteger aquilo que nos torna verdadeiramente humanos.
Entre Propriedade e Justiça: o Uso Exclusivo do Imóvel e a Divisão do IPTU
Se no primeiro caso a impenhorabilidade protegeu o lar como espaço existencial, em outra decisão a Quarta Turma do STJ, conforme síntese divulgada no site institucional da Corte em 07 de março de 2025, voltou-se ao equilíbrio patrimonial no contexto sucessório.
O processo, que tramita sob segredo de justiça, envolvia herdeira que ocupava sozinha um imóvel do espólio e já indenizava a outra sucessora pelo uso exclusivo. Ainda assim, o juízo de origem determinou que arcasse integralmente com o IPTU. O colegiado do STJ, entretanto, reconheceu que tal imposição romperia a harmonia sucessória, ao criar dupla compensação e vantagem indevida.
Na sentença de homologação da partilha, o magistrado da primeira instância, havia atribuído à herdeira possuidora a responsabilidade exclusiva pelo imposto, afastando o encargo do espólio. O tribunal estadual manteve a decisão, sustentando que quem usufrui do bem deve responder sozinho pelos encargos fiscais correspondentes.
Ao apreciar o recurso, o ministro do STJ, Antonio Carlos Ferreira, relator, ressaltou que o IPTU é obrigação propter rem, vinculada à titularidade do direito real sobre o imóvel. Enquanto não se conclui a partilha, os bens permanecem em regime de condomínio, e as obrigações fiscais devem recair sobre o espólio, de forma proporcional, e não sobre apenas um herdeiro.
O relator destacou, contudo, que o herdeiro que se beneficia do uso exclusivo pode ser compelido a indenizar os demais, a fim de preservar o equilíbrio patrimonial e impedir o enriquecimento sem causa.
A decisão corrige uma distorção importante: reconhece que não se pode exigir simultaneamente a indenização e o pagamento integral do tributo de quem ocupa o bem, sob pena de pagar duas vezes pelo mesmo fato. O STJ, portanto, reafirma que a partilha não é mero cálculo de valores, mas ato de justiça distributiva, no qual se deve buscar a proporcionalidade entre o usufruto e o ônus.
A decisão reafirma que o direito sucessório e imobiliário não regula apenas bens, mas sobretudo relações. O imóvel herdado não é posse individual antes da partilha, mas patrimônio coletivo em transição, que exige equilíbrio e responsabilidade compartilhada, neste caso, do IPTU.
Tal como na impenhorabilidade, o STJ deixa claro que a justiça patrimonial deve ceder diante de valores superiores: a dignidade da moradia e a equidade entre sucessores. Em ambos os julgados, a casa não é apenas ativo econômico, mas vínculo humano que o Direito deve resguardar.


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